Plus500

30.9.08

Cenário de um Residente nos EUA - Zarautz

Quando percebi que o Zarautz estava online no Fórum Monitor Financeiro, solicitei sua participação, já que, por ser um residente nos EUA, ele poderia nos passar uma leitura bastante fiel dos acontecimentos que envolvem a economia e o povo americano:

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E por aí amigo, as coisas não parecem mesmo fáceis.

Imagino que apesar dos pesares, com a sua gestão conservativa do patrimônio, os problemas do sistema financeiro não tenham lhe atingido diretamente (no sentido de ser precavido em distribuir o capital por diversas contas).

Mas a coisa tem jeito de ser maior. O seu texto que foi encaminhado - A Marcha para a Insensatez - eu publiquei como artigo... muito contundente.

O fato é que estes 700 bi (ainda mais parcelados...), ou alguns TRIs, talvez não resolvam tudo... a população vai pagar o preço da ganância + negligência dos órgãos (ir)responsáveis (Fed, SEC, Treasury - e acima deles a White House)

Enfim, espero que vcs estejam conduzindo bem e lidando de forma racional com todas estas adversidades.

Aqui vai tudo correndo bem, por enquanto...
Abs a todos ^v^

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Márcio,

(Como estrangeiro, sempre tenho de comentar com certo cuidado e reserva, pois esta não é a minha praia e eu estou morando na casa dos outros.)

As coisas aqui estão, a meu ver, em uma condição que não seria fácil imaginar acontecendo num país como este.


Eu me explico. Este é um país fortíssimo, tanto economica quanto politicamente. Politicamente, tem instituições consolidadas, que já se afirmaram ao longo de séculos e sobreviveram a ameaças fortíssimas. O Executivo sobreviveu à existência de presidentes deploráveis, ao assassinato de vários presidentes, às acusações de que tais assassinatos faziam parte do "processo político normal " americano, aos ataques do Legislativo tentando invadir campos da alçada do Executivo. Por seu lado, o Executivo também tentou varias vezes invadir seara do Legislativo. E do seu lado, o Judiciário, sem ser superior ao Legislativo ou Executivo, dá a última palavra em matéria constitucional, interpreta as leis e os precedentes (de certa forma criando assim novas leis ou novos parâmetros de comportamento). Exemplifico com casos nos quais o Judiciário foi o poder principal para acabar com a segregação racial (contra a vontade do Legislativo e, sobretudo, do Executivo), para estender às mulheres tratamento idêntico ao assegurado aos homens, para legalizar certas formas de aborto a título de respeitar o direito "soberano" que a mulher tem sobre o seu próprio corpo, e assim por diante.

Econômica e financeiramente, uma potência. Incrível democratização e dispersão da propriedade acionária pela população (milhões e milhões de americanos possuem ações e títulos da dívida). Tendo sido um país líder na indústria, passou a ser o país lider no setor de serviços, quando as manufaturas preferiram ir se estabelecer em países de mão de obra mais barata ou de condições legais (como câmbio, ou salário, ou encargos sociais, ou isenções fiscais) mais favoráveis do que as de dentro dos EUA.

Pois bem, essa potência veio caminhando faz alguns anos para a beirada do abismo. Abusando do setor imobiliário, permitindo uma falsa valorização das habitações, multiplicando o endividamento em hipotecas, inclusive por parte de prestamistas reconhecidamente incapazes de repagar as hipotecas, as autoridades deixaram que esses títulos podres fossem consolidados dentro de caixas pretas (derivativos e coisas semelhantes) e fossem vendidas nos Estados Unidos e no mundo como títulos de rentabilidade garantida.


Quando essa pirâmide maluca começou a balançar, os mais espertos, os mais medrosos, os mais bem informados começaram a saltar fora. Inúmeros altos executivos coletaram seus bônus e prêmios. Os lentos, os otários, os mal informados, os sem alternativa, quando o bolha estourou, esses ficaram segurando o pires, mas logo descobriram que ele ficaria vazio.

E o governo federal, que tem por obrigação saber de tudo isso e de muito mais, deixou de cumprir o seu dever de casa. Parte por ideologia, pela filosofia de não "intervir" no mercado, pela esperança utópica de que o mercado sempre se corrige, parte por estar com a cuca cheia, tonto pelas burradas mil que fez no Afeganistão, no Iraque e no resto do mundo. De um país entregue pelo Clinton com um Orçamento superavitário e com uma dívida pública "manageable", em oito anos passaram os EUA a ser um país com uma dívida pública insuportável, com Orçamento escandalosamente deficitário, com o dinheiro indo pelo ralo no Iraque e no Afeganistão, bem como na importação de petróleo e na importação de todo o gênero de produtos manufaturados. Um país cuja caminhada vem cada dia sendo mais sustentada pelos dólares que a China, tendo recebido como pagamento de exportações, aceita "investir" de volta em tíitulos da dívida dos EUA.

Loucura pura, por todo o canto, a todo instante. Me impressiona como um país tão rico e tão forte conseguiu cavar para si (e para o resto do mundo, de tabela) buracos tão profundos.

Agora estão nessa corrida patética, tentando inventar um tipo de esparadrapo que possa ser usado para tapar as feridas do doente. Não que isso vá curar a doença. O esparadrapo que estão buscando servirá apenas para estancar a hemorragia enquanto, depois, eles vão estudar quais as verdadeiras razões e dimensões de seus problemas na tentativa de encontrar os verdadeiros remédios.

Quanto de esparadrapo se precisa? Ninguèm sabe. Uma alta funcionária do FED, a quem pediram que explicasse a cifra de 700 bilhões de dólares para o pacote, teria respondido algo como: "não sabemos, sabemos só que a cifra tem de ser alta porque o problema é muito grave. Então chutamos um número grande, 700 bilhões, como poderia ter sido mais ou poderia ter sido menos."

É isso aí, meu caro. O mar não está para peixe. Milhões estão perdendo suas casas, retomadas pelo default no repagamento das hipotecas. Milhões estão tendo suas aposentadorias comidas, pois aqui existem mecanismos pelos quais os empregados depositam parte de sua remuneração em contas (chamadas 401(k) ) - que, junto com a contrapartida depositada pelo patrão, são investidas em ações, bonds, fundos mútuos. Quem está se aposentando por agora e tem de sacar seus fundos está "realizando' prejuízos espantosos e irrecuperáveis. Muitos estão descobrindo que estão se aposentando sem perspectiva de receber a aposentadoria como a haviam calculado. Há milhões de aposentados (especialmente viúvas de aposentados) que agora estão vendo que não conseguirão viver com o que recebem. E certamente essas pessoas não têm a mínima condição de voltar ao mercado de trabalho.

(Se a tudo isso você soma as destruições do Katrina e do Ike, que destruiram o patrimônio de dezenas de milhares de famílias, dá para ver como estão as coisas)

Não é mole, não. Todos somos atingidos, pois ninguém é uma ilha neste mundo de economia globalizada.


Mas pelo menos no que dependia de mim, eu sempre achei que quando a esmola é demais o santo desconfia. Além disso, pela minha faixa de idade, faz vários (muitos) anos que eu achei que não devia estar investido em ações.


Olhando para trás e calculando o valor cumulativo do rendimento de minhas conservadoríssimas aplicações (no Brasil em CDI ou equivalentes) e nos States em Certificados de Depósito Bancário ou equivalentes (cuidando para não exceder os limites de garantia dada pelo Tesouro dos Estados Unidos) fico até bem satisfeito com a taxa acumulada de retorno.


É isso aí. E nem falei das eleições. Mas vou parar por aqui se não...


Um abraço para você e tudo de bom para as meninas.

3 comentários:

Anônimo disse...

Seagull, acho esse sr. de uma elegância ímpar. Gosto muito de ler o que escreve.

Anônimo disse...

Sem dúvida, também sou um apreciador de todos os seus textos

Seagull disse...

Opa!

Só agora me dei conta dos seus comentários.

Concordo e endosso plenamente!

Eu, mesmo suspeito para falar, tenho uma admiração e respeito enorme por tudo que vem do Zarautz.

Quem não o conhece, talvez nem imagine que trata-se de um ex-diplomata que ficou entre os primeiros na formatura de sua turma no Itamaraty. Foi colega do Celso Amorim, entre outros.

E ainda adquiriu muita experiência em suas viagens de negociação pelo mundo afora, mesmo depois de trocar a carreira diplomática pela iniciativa privada em uma multinacional.

Enfim, uma cabeça como poucas que conheci... muito culto... um mestre.. e exemplo de postura como ser humano e profissional!

Abs ^v^